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LÍNGUA E PODER: A NORMA INATINGÍVEL

 

Falar, escrever, usar a língua no cotidiano acontece em meio a muitos problemas. Mesmo quem usa o idioma na sua profissão não está livre de cometer erros crassos. Não estou falando de desvios da norma culta, mas de abusos de poder, práticas de silenciamento e desrespeito com os usuários da língua. Mais comuns do que se imagina, são baseadas numa compreensão estreita da língua, mas ao mesmo tempo no uso ideológico de suas forças de controle de sujeitos.

Partindo do exemplo da língua portuguesa, a distância entre a norma e o uso é muito grande, ainda que a língua usada em sociedade possa claramente ser reconhecida como a mesma língua dentro da norma. Essa distância é resultado de incompreensões específicas que nos atingem em idade definida. É na escola que aprendemos a amar ou a odiar o idioma, pois ensinam-nos a escrita e seu uso complicado e nada natural. O problema é que o aprendizado da escrita traz em seu bojo os problemas dos usos coletivos da língua: as múltiplas relações humanas,sociais e históricas imprimem na fala e na escrita sua marca, seus poderes e seus problemas.

A primeira das coisas a se pensar, a respeito do ensino da língua, é onde ela é ensinada. O primeiro momento é dentro do seio familiar. Aprende-se a falar junto com o aprendizado, muitas vezes dolorido, das relações de poder dentro dos lares. Após as primeiras palavras e o sentimento de deslumbramento dos mais velhos de casa, o “não” é ensinado com ênfase, a experiência pode incluir momentos vexatórios ou incômodos em que a imitação infantil da fala adulta não seja exatamente correta. O desembaraço na fala é também uma forma de se ver livre de constantes correções a respeito do modo como se deve falar. Crianças mais velhas, ali por volta dos sete ou oito anos, podem apresentar distorções na pronúncia de certas palavras, principalmente se aprenderam a falar em lares indulgentes demais, algo considerado mau, corrigido com veemência na escola; o aprendizado da língua é claramente um ato de microviolência simbólica. Primeiro porque se impõe uma socialização forçada como forma de aprendizagem entre pares, em segundo lugar, impõe o uso de um código que deve mediar o mundo inteiro e consigna a existência de coisas concretas e abstratas ao uso da palavra.

Até certo ponto não faz tanto sentido questionar as relações entre linguagem e as coisas a que ela refere. Mas aqui faz sentido sim, uma vez que a imposição unilateral da linguagem, independente do indivíduo, é o que dá sentido à exclusão de deficientes visuais e auditivos, por exemplo, muitas vezes excluídos da vivência social porque ela depende da interação por meio da língua falada, principalmente. A fala é uma espécie de vírus que se instala no pensamento humano, domina a significação e se impõe como transcodificadora da realidade. Um surdo, por exemplo, é irreal e muitas vezes inacessível para muitas pessoas por causa da língua que usa, diferente da língua falada.

Saindo do seio da família e das primeiras relações sociais, a língua passa a ser ensinada na escola, espaço privilegiado da ação de poderes específicos sobre o corpo do sujeito, preparando-o para o exercício de funções sociais mais ou menos combinadas, mais ou menos determinadas em sociedade. O objetivo da escola é imprimir uma marca civilizatória sobre os sujeitos de diversas classes, preparando-os para o desempenho de funções laborais. Nesse contexto, o ensino da língua não pode levar muito longe, mesmo quando seu objetivo é ensinar sujeitos e classes superiores. A língua deve se focar no ensino castrador de uma norma que se torna, então, a única realização linguística realmente aceita e respeitada. Seu domínio parece ser um objetivo inalcançável, e realmente é, uma vez que a norma culta ou padrão de uma língua não é utilizada por nenhuma das classes sociais daquele país, e sua existência independente das realizações reais da língua parecem ter mesmo uma função específica de produzir esse efeito de inferiorização. A língua dos livros de português, das gramáticas, dos textos informativos, das redações é sempre inatingível ou pelo menos mais difícil de alcançar do que o Santo Graal, e nessa realidade deturpada sobrevive a língua geral, aquela que falamos no nosso dia-a-dia, aquela cuja existência provoca incômodo nas pessoas. É desconfortável saber que a variante que usamos para confortavelmente nos comunicarmos com as pessoas na nossa família é considerada erro perante um padrão.

Escritores, jornalistas, professores, redatores, revisores e outros tantos usuários da língua escrita, assim como os repórteres, apresentadores, radialistas, entre outros que a usam de modo público e falado, têm de ligar e desligar a todo o momento o interruptor da fala coloquial, para que suas palavras do dia-a-dia não apareçam em descrições, relatórios, artigos, entre outras coisas. Não discutirei os usos técnicos da linguagem, porque eles atendem a uma imposição específica que, além da norma, precisa de adaptações vocabulares, entre outras coisas, oriundas igualmente de relações de poder específicas que autorizam sujeitos a falar em nome de ciências e prática específicas.

Nos usos escolares, profissionais e sociais da língua com o que me preocupo agora, a norma culta é uma imposição que vem junto com um poder que marca a ordem do discurso, que tira de nós mesmos, sem a imposição de uma ciência, de um saber específico, a autoridade total sobre o que dizemos (só o médico emite um laudo ou receita, mas em sociedade, os falantes deveriam ser donos, autorizados a usar sua língua com liberdade). O afastamento das pessoas da norma culta, assim como a existência de uma norma culta da linguagem para sempre longínqua e inatingível retira a língua da esfera dos micropoderes que o sujeito exerce, sempre lançando a um próximo autorizado a sua aplicação, esses autorizados, os professores de língua portuguesa, por exemplo, estão encerrados dentro de espaços econômicos de usos do poder que também os desautorizam, como é o caso da escola, e nem sempre há a possibilidade de conferir a quem usa a língua, uma autonomia.

Sem autonomia, o que é para poucos, o uso da língua pode não ser mais prazeroso, ele volta ao estágio infantil de constante correção, assim como também pode ser algo complicado pelos meandros do saber linguístico, que circula por meios exclusivos e pouco popularizados, dificultando o acesso, concentrando-o em ambiente escolar. No entanto, o ambiente escolar não ensina para a liberdade, antes, esquadrinha, comprime e controla o sujeito por meio do uso controlado e meticuloso do tempo e do espaço que o corpo ocupa. Os usos da língua em sociedade incluem essa ambiguidade. A mesma língua divertida das canções, dos livros, das histórias prazerosas, que está no cinema, que usamos para comunicar de modo alegre, é também a língua das obrigações e usos jamais dominados, jamais aprendidos. Essa neurose linguística é, acima de tudo, constituinte do sujeito a que queremos, afinal, chamar de indíviduo.

 

Alex Mendes

Alex Mendes é professor, graduado em Letras, Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Reside em Goianésia, ensina língua portuguesa e inglesa na rede estadual de Goiás

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